quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Nos Emirados, dívidas com cartões podem levar à cadeia


Antes de chegar a esta meca do trabalho imigrante aos 48 anos, Evelyn Naces, enfermeira filipina, nunca tinha tido um cartão de crédito. Logo ela passou a ter 14 deles – e, assim como milhares de outros trabalhadores estrangeiros aqui, foi presa por dívidas.
“Quando eles me algemaram foi o pior”, disse Naces, que tinha US$ 27 mil em contas atrasadas, a maioria por ajudar seu filho adulto a iniciar um negócio nas Filipinas, que depois faliu. “Senti-me tão degradada”.
Por anos, os bancos lançaram cartões de crédito para os estrangeiros que chegaram aqui para trabalhar em shoppings e preencher as torres de escritórios. Os trabalhadores, muitos deles crescidos em países pobres e agora com facilidade para obter crédito, gastaram mais do que podiam. Perdas surpreendentes se seguiram, com prisões para os que não podiam pagar.
Consideradas como empréstimos contratados de forma irresponsável ou praticas financeiras negligentes, as histórias oferecem uma visão pouco comum sobre as emoções escondidas – redes de orgulho, culpa e obrigações familiares – que acompanham milhões de imigrantes de todo o mundo.
Alguns compravam por prazer, mas muitos acumulavam contas por atender a pedidos de parentes pobres para necessidades tão variadas como gado e cuidados médicos. A capacidade de dizer 'não’ poucas vezes parecia uma opção. Mas, outras pessoas, se sentindo desenraizadas, construíram casas em seus países de origem, casas que elas podem nunca ocupar. Algumas mães que deixaram seus filhos para trás tentaram acalmar seu sentimento de culpa com presentes caros.
“A família no país de origem muitas vezes pensa que o imigrante está ganhando muito dinheiro e eleva suas expectativas”, disse Grace Princesa, embaixador filipino para os Emirados Árabes Unidos, que tornou a redução do débito parte de uma campanha do governo para melhorar as condições de imigrantes. “O imigrante pobre vai mais fundo na divida. É um ciclo vicioso”.
Esse foi o caso de Naces, agora com 52 anos. Ela é mãe solteira e deixou seu filho pequeno com seus pais e foi à Arábia Saudita para ganhar dinheiro para sustentá-lo. Quando ela chegou aos Emirados, em 2007, ele já havia crescido sem ela.
Embora ela não pudesse obter um cartão de crédito na Arábia Saudita, nos Emirados ela mal conseguia evitar um. Vendedores perseguem enfermeiras do lado de fora de hospitais e fiéis após a missa numa igreja filipina.
Naces comprou móveis, roupas e refeições para si, mas suas maiores despesas envolveram seu filho, cuja afeição ela temia ter perdido. Ela construiu uma casa para ele nas Filipinas e comprou cinco carros com cartões de crédito para que ele pudesse começar um negócio de aluguel de veículos. “Senti-me culpada por estar longe e não tê-lo criado”, ela disse. “Eu estava tentando compensar”.
Ambos foram para a cadeia – ele, por acusações envolvendo drogas; ela, por dívidas.
Embora o governo não revele quantos devedores foram presos, um órgão legislativo, há muitos anos, estimou que 10 mil deles estavam em tribunais ou na prisão. O chefe policial de Dubai reclamou que os devedores enchem as cadeias sem necessidade, e funcionários alertaram ao ministério do Trabalho de que os problemas de dívidas distraem os empregados. Cerca de 85 por cento da população do país – e 99 por cento da força de trabalho do setor privado – consiste em trabalhadores estrangeiros, e autoridades locais observam sinais de insatisfação.
“Os funcionários disseram que essa era uma prioridade”, afirmou Qassim Jamil, do ministério do Trabalho.
O Banco Central apertou as regras para empréstimos este ano. O ministério do Trabalho patrocinou um programa de educação financeira para líderes imigrantes.
“O que queremos? Liberdade!”, gritou Princesa, a embaixadora, numa sessão para filipinos. “Liberdade da pobreza! Liberdade de problemas com cartões de crédito! Liberdade de problemas com bancos!” Se os imigrantes gastaram intensamente, as instituições que emprestaram o dinheiro os incentivaram. Tradicionalmente, o uso do cartão de crédito era baixo (em parte devido a escrituras islâmicas contra a cobrança de juros), mas os bancos detectaram um novo mercado e agiram agressivamente.
Com bancos estrangeiros como HSBC e Citigroup lutando por participação no mercado local, o numero de cartões chegou a 4 milhões em 2008, um aumento de cinco vezes em cinco anos, de acordo com o Lafferty Group, uma empresa de pesquisa de Londres. Mas o país não possui um bureau de credito confiável, então as instituições que concedem empréstimos não sabem dizer quantos cartões foram emitidos ou o nível da dívida.
“Os bancos estavam loucos para emprestar, e não possuíam verificações de crédito adequadas”, disse Andrew Neeson, analista do Lafferty.
Cortejados com presentes e taxas atraentes, poucos mutuários entendem os custos. A taxa de juros média no ano passado nos Emirados, em 36 por cento, era mais que o dobro da média global, e os bancos regularmente acrescentam outros 10 por cento por seguro de incapacidade e morte. Alguns trabalhadores pegaram empréstimos com juros de 50 por cento ou mais.
Qualquer pessoa pode ficar tentada com o crédito fácil, mas os imigrantes criados na pobreza podem achar os belos shoppings daqui especialmente inebriantes.
“Na primeira vez que eu usei meu cartão, fiquei maravilhada”, disse Naces.
“É uma sensação de empolgação, de poder – de grandiosidade”.
Rex Arcenio, optometrista filipino, aceitou um cartão especial porque vinha com uma caneta Montblanc e um percurso de limusine até o aeroporto para sua viagem anual. “Era como um símbolo de status”, disse.
Ele acumulou US$ 50 mil em dívidas – para a educação dos filhos, para o tratamento de câncer do irmão e uma casa em Manila – e foi brevemente preso.
Tecnicamente, os devedores vão presos pela devolução de 'cheques de segurança’ em branco que eles devem assinar quando aceitam um cartão. Se os consumidores não pagarem, os bancos podem depositar os cheques pela quantia devida, e cheque sem fundos é crime.
Sendo estrangeiros ou nativos dos Emirados, os clientes que pegam empréstimos devem pagar a dívida depois de sair da cadeia, embora os bancos muitas vezes aceitem reduções.
Trabalhadores capacitados aqui geralmente são mais bem tratados do que em países vizinhos como Arábia Saudita, o que pode fazer com que suas dívidas causem um choque. As condições das prisões nos Emirados são descritas como confortáveis, mas os acusados muitas vezes aparecem no tribunal com correntes no pé.
“Meu mundo entrou em colapso”, disse Arcenio, um homem orgulhoso que usava uma bata de laboratório branca.
Aisha Alambatang, 54 anos, que foi presa por um mês em fevereiro por dívida com um cartão, pode ir para a cadeia novamente por dívidas com outros.
Enfermeira filipina com três filhos, Alambatang passou grande parte da infância deles no exterior, sustentando-os da Arábia Saudita. Quando ela chegou aos Emirados há oito anos, recebeu um aumento e seis cartões de crédito.
Ela construiu casas para si e para a filha e ajudou os filhos a iniciar vários negócios falidos. Depois, ela pagou para que dois deles se mudassem para Abu Dhabi para procurar emprego.
Logo ela passou ganhar um salário de US$ 2.200 e uma dívida de mais de US$ 3 mil. Sua filha estava no tribunal quando Alambatang chegou. “Quando minha filha me viu com uma corrente no pé, senti meu coração se partir”, disse.
Temendo voltar para a prisão, Alambatang sente palpitações quando vê a polícia, e dorme com a filha para confortá-la.
“Não estou mais na cadeia. Mas aqui”, ela disse com a mão sobre o coração, “estou mais presa”.